segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Tora! Tora! Tora! (a batalha do sushi)

Não gosto de restaurantes self service. No máximo um buffet de saladas ou de antepasto. E só.
Em primeiro lugar, gosto de ir a um restaurante - estudar demoradamente o cardápio, escolher um bom prato, uma bebida legal para acompanhar e esperar, me esbaldando num couvert tipo La Mole, enquanto a comida está sendo preparada.
E nem precisa ser do tipo de casa em que a conta soma a data, número de rg do dono e da inscrição estadual. Mesmo que você tenha consumido apenas uma mísera azeitona e um copo d’água. Da bica.
Adoro quando peço um linguado, por exemplo, e o garçom prepara o prato ali na minha frente, retirando as espinhas inteiras, arrumando o peixe no prato, colocando as batatas em harmonia com o resto e espalhando o molho de alcaparras com a perícia de um cirurgião.
Gosto do troca-troca de pratos e o supremo conforto de guardanapos de pano.
Num self service as refeições ganharam a impessoalidade de um fast food qualquer. Pode ser prático, não resta dúvida. Mas totalmente desprovido de charme.
Além do mais, em caso de lotação exagerada, você sempre corre o risco de ter de dividir sua mesa com um desconhecido qualquer. Com alguma sorte o sujeito vai sentar, comer e sair fora. Num dia de azar ele vai puxar assunto com você.
Se fosse para ser assim eu iria fazer minhas refeições num restaurante Pueblo Revolucionario, em Cuba. Se bem que eu poderia ir para a Coréia do Norte... Hum... Não. Lá eles nem tem comida quanto mais restaurantes.
Outro motivo para não gostar desse tipo de serviço é meramente estético. A visão de pratos e mais pratos passando diante dos meus olhos com composições nauseantes é demais para o meu delicado espírito gastronômico.
E cabe aqui um pequeno parêntese. Quando falo em delicado espírito gastronômico, não estou me referindo a esses programas de culinária para gente rica. Já notaram que nada do que eles usam é possível de ser achado numa quitanda de esquina qualquer? Tem sempre um azeite balsâmico feito nas montanhas da Albânia Central ou um queijo fabricado uma vez a cada cinco anos por monges anões da Mongólia Exterior. Essas coisas.
E também não precisa ser nada vindo diretamente da culinária francesa. Aliás, vamos deixar uma coisa bem clara aqui. Vocês não acham esse falatório todo sobre comida francesa um certo exagero? Os caras comem cavalo, pelo amor de deus! Comem sapo! Comem lesma!
Se bem que em francês tudo fica mais, digamos, mais palatável, né não? Existe uma diferença enorme em se pedir um prato de escargot e um prato de lesmas. Sair de casa e dar uma passada no açougue de carne de cavalo é muito pior do que sair para dar um passeio no boulevard, almoçar num bistrô e na volta fazer compras na chevaline. É ou não é très chic?
O meu delicado espírito gastronômico se refere simplesmente à comida gostosa, bem feita e de preço razoável já que eu não sou nenhum Rockfeller.
Voltando à questão estética, vocês já reparam nos pratos que neguinho monta? Você está lá naquela fila lamentável junto à comida e eis que passa bem diante dos seus olhos algo que mais se assemelha a uma instalação de artista plástico picareta. O cara coloca num mesmo prato batata frita, batata assada, batata cozida, salada de batatas e um raminho de agrião.
Você vira para o outro lado tentando evitar aquela visão medonha e vê um outro carregando uma maquete de ferro velho em direção à balança. O criminoso equilibra num mesmo prato macarrão, arroz, feijão, fatias de picanha, frango, batata frita, rodelas de tomate, salada de feijão fradinho, palmito, ovos de codorna, ovo frito, pão de alho, um pastel, duas empadas e um raminho de agrião. Pra beber, um refrigerante light, é claro.
O vislumbre dessa monstruosidade faz qualquer um perder a fome quase imediatamente. Ou correr para uma galeria de arte atrás de uma instalação qualquer. Só pra manter o clima.
Tem também aqueles restaurantes que tem a audácia de anunciar que servem comida japonesa.
Audácia sim, por que aqueles croquetes de arroz azedo cobertos por toras de peixe podem ser tudo menos comida japonesa. A não ser quer o freguês não se importe pelo fato do cara que está preparando os alimentos esteja mais para lenhador do que para sushi man. Até o gengibre vem com a espessura de uma prancha de compensado. Mas as pessoas se deliciam. Comem e repetem como se aquilo se tratasse um manjar de deuses com um nível baixíssimo de exigência.
E se algum dia eu tive um mínimo de simpatia por restaurantes self service, ela virou fumaça por causa desse episódio lamentável. Escutem só:
Certo dia, eu e o meu filho fomos almoçar juntos. Naquela época eu trabalhava em Botafogo e combinei com ele um encontro num restaurante japonês perto do meu trabalho. O lugar era bem legalzinho e servia sushis de qualidade a peso. Saia em conta no bolso e no paladar. Quando chegamos fomos informados que naquela hora era oferecido um desconto sobre o preço cobrado. Estava ficando interessante.
O salão estava quase vazio e a bandeja onde estavam os sushis também. Já não era tão interessante assim. Não se pode ganhar todas né não?
A coisa estava até meio caidona. Uns poucos salmões, outros parcos Califórnia e alguns inari. Inari?
É inari. Vocês sabem o que é inari? É um sushi só de arroz que vem dentro de uma espécie de bolsa adocicada de sei lá o que coberto de salmão defumado ralado e gergelim torrado. Uma delícia inacreditável. Poucos restaurantes servem. Para a pobreza da bandeja aquilo era uma compensação bastante razoável.
Começamos a nos servir felizes da vida. Um pouquinho disso, outro pouquinho daquilo, um braço gordo e suarento entrando no meio e pegando tudo... Como é?
Pois de repente saído do nada entrou na nossa frente aquela mulher, armada de prato e pinça. Armada sim, porque a desgraçada empunhava os trecos como quem parte para uma luta corpo a corpo. E sem a menor intenção de fazer prisioneiros.
Olhei para a infeliz com um olhar que mais parecia cena de bang-bang italiano. Minha vontade foi dar um safanão na criatura e tirá-la do nosso caminho.
Como se não bastasse a variedade minúscula de sushis a muquirana ainda por cima furava fila e pegava tudo que encontrava. Desaforo!
E não é que a descarada teve o desplante de falar: “Pode passar, meu filho. Pode passar que eu vou demorar”. E se atracou com todos os salmões da bandeja.
Meu filho passou batido pelos inaris. Erro fatal. A velhota parou, olhou e perguntou. Aos berros, por que essa gente só fala gritando.
“Isso aqui é o que, hein?”
Querendo mandar a figura à merda, respondi, sem embandeirar que aquilo ali era muito gostoso. Nessa altura os sushis no prato dela mais pareciam aviões no convés de um porta-avião pronto para atacar Pearl Harbour. Tentei ser grosseiro e insinuei que talvez, quem sabe, a senhora possa não gostar.
Não surtiu o menor efeito. Pegou os que restavam. Logo depois a atenção da mulher foi deslocada para uma bandeja de califórnias com recheio de salmon skin. Caiu matando. Foi horrível de se ver. A velha era uma predadora. Uma profissional das filas de restaurantes self service. Eu e meu filho não tivemos a menor chance.
Resignados, restou-nos procurar uma mesa e dividir os inaris que escaparam do ataque relâmpago da terrorista dos sushis. Quase ao mesmo tempo a mulher se apropriou de uma mesa. Aliás, mesa vazia era a única coisa que não faltava no lugar.
Assim que tomou posse da mesa a taliban dos self service, pousou o prato sobre ela e num gesto inesperado voltou para as bandejas de sushis!
Ficamos, eu e meu filho, com os hashis parados no meio do caminho entre o prato e nossas bocas, califórnias pingando shoiu na mesa. Os queixos caídos envoltos em incredulidade.
Do outro lado do restaurante a mulher, com movimentos selvagens, dava cabo dos sushis restantes. Um verdadeiro massacre. Juro que ouvi a infeliz gritar Tora! Tora! Tora! Uma tragédia.
Nem Jason em dia de grande inspiração seria capaz de tamanho banho de sangue.
Quando a serial killer voltou para sua mesa um silêncio pesaroso abateu-se sobre o salão. Impossível não lamentar o genocídio covarde ao qual foram submetidos aqueles derradeiros exemplares de tão agradável e saborosa aparência.
Ainda tocados pela cena continuamos a comer. Antes de se engrenar num papo qualquer eis que a doida se levanta mais uma vez e vai na direção das bandejas de pratos quentes. E agora, a celerada carregava não um, mas dois pratos sendo que num deles equilibrava uma quentinha!
Se alguém passasse uma faca no ar poderia cortar o silêncio. E se ele caísse bem fatiado com toda certeza a louca colocava tudo no prato.
Olhei em volta e percebi que ninguém mais tirava os olhos da mulher. E foi nesse instante que adentrou no recinto um homem. E tudo ficou claro.
O cara devia ser marido dela e o prato extra era para ele.
O cúmplice mandava a kamikaze ir na frente para fazer o serviço sujo. Ele chegava depois e arrematava.
E no arremate foi direto para seção dos quentes carregando também dois pratos. Um era uma quentinha.
Uma dupla de terroristas estava à solta nos restaurantes a peso. Uma horda de hunos dos talheres passava pelas filas deixando um rastro de desolação e espanto à sua passagem. Nem mesmo um talo de salsa resistia à sanha esfomeada da dupla. Eles levavam o desconto muito a sério.
Nunca mais fomos os mesmos. Certas coisas são muito difíceis de se esquecer. Ainda hoje tenho pesadelos onde vejo a tal mulher caminhando em minha direção com os olhos fixos no meu prato, pinças gigantescas fazendo clac-clac-clac pra mim.. O horror... O horror...
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