segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Uma tarde na análise

Fazia análise já havia algum tempo. Começou fazendo quando seu casamento entrou em crise pela primeira vez E continuou até depois do casamento acabar. Primeiro foram tres sessões por semana. Depois duas. Por fim, uma.

O consultório da terapeuta ficava num andar térreo de um prédio de tres andares numa rua cheia de árvores no Jardim Botânico. Para um local de trabalho que lidava com as emoções dos outros era um tanto devassado. Era comum ver e ouvir as pessoas que passavam por um corredor externo em direção à portaria do prédio. O consultório possuía um entrada independente.

Num desses dias de falta de inspiração, citações esparsas, nada fazendo muito sentido , longas pausas silenciosas, alguém com sotaque argentino falando através da janela do consultório... Alguém falando através da janela? Sotaque argentino?

Por favor... yo queria saber do apartamiento de dõna Marina...

Ainda tomados pelo espanto tentaram explicar ao homem que a portaria era no corredor ao lado, que ali funcionava um consultório e que ele procurasse o porteiro. Ele foi. Saiu da janela como entrou. Rapidamente buscaram retomar a sessão envoltos no inusitado do acontecido. Nunca pôde lhes ocorrer que alguém pudesse meter a cara numa janela alheia para perguntar sobre quem quer que fosse. Comentou com a terapeuta sobre uma fantasia que tivera quando começou a se tratar com ela. Depois de cada sessão ficava imaginando se alguém estivera abaixado do lado de fora da sala bem debaixo da janela escutando a sessão. Essa sensação durou umas duas semanas. Depois, achou que era perda de tempo ficar encanado com tal pensamento. Afinal não era nenhum pedófilo contumaz ou necrófilo ou ainda um Édipo furioso por ter enfim consumado seus desejos incestuosos com sua mãe. Na verdade era apenas mais um maluquinho de classe média devastado pela crise matrimonial e suas conseqüências no que restara de sua vida. Nem mais nem menos. Nada que um idiota qualquer não pudesse ouvir

Tentando retomar de onde tinham parado, perguntou à analista se isso já havia acontecido antes. Ela respondeu que sempre tinha gente passando pela janela. Mas ninguém, até aquele dia tinha chegado a interromper a sessão...

Por favor... Yo... Bien... Es que doña Marina... el apartamiento...

Ficaram os dois no mais incrédulo silêncio. Não satisfeito em fazer a primeira, o tal portenho resolveu fazer de novo!

E insistia

Yo no encontro el apartamiento...

Foi interrompido quando o paciente levantou do sofá e foi até a janela segurando as grades com as duas mãos assim que parou.

Meu amigo, começou muito delicadamente, isso aqui é uma clínica psicoterapeutica. E nós estamos bem no meio de uma sessão. Aquela ali - apontou para a terapeuta, é a

psicanalista e eu - aproximando o rosto das grades num gesto teatral - sou o maluco.

Antes que a palavra maluco parasse de ressoar pela sala o invasor involuntário havia desaparecido, sem deixar traço. Talvez tenha ouvido as gargalhadas dos dois. O bairro inteiro deve ter escutado. Intermináveis gargalhadas que se repetiram todas as vezes em que falaram do assunto.